Afirmar hoje que Sócrates não morreu no momento em que ingeriu o veneno que o adormeceria para sempre, é dizer que alguns dos seus ideais pelos quais sempre lutou, senão todos, se encontram actuais e a viverem entre nós. É dizer que a sua morte foi realmente injusta e consumada sob o efeito da convicção, infelizmente ainda hoje presente em cada um de nós, de “ter o rei na barriga” e não permitir a existência da sua oposição.
De facto, a actual sociedade do século XXI demonstra padecer de uma doença da qual nunca se conseguiu curar e que Sócrates profetizou há alguns séculos atrás. A doença da sabedoria ignorante. Esta doença, por muito que o Homem se esforce a provar que dela não padece, o seu dia-a-dia continua a demonstrar exactamente o contrário.
Sem necessidade de nos alargarmos a um universo muito maior, vejamos o caso da sociedade portuguesa. Os portugueses, talvez por vaidade ou não, são incapazes de não opinar seja ele sobre o que for. Desde a medicina à política, do desporto à pesca, da arquitectura à pecuária, o que é certo é que possuímos uma invulgar capacidade operante para produzir opiniões sobre tudo e todos.
Qual de nós admite que nunca se referiu a um tema do qual não percebe rigorosamente nada, só porque lhe parecia conveniente fazê-lo naquele momento? Qual de nós nunca comentou sobre política? Sobre economia? Sobre desporto? Qual de nós, ao ver um amigo com uma dor de cabeça, nunca lhe realizou um diagnóstico e até lhe sugeriu medicação?
Este conhecimento, ignorância como lhe chamava Sócrates, abunda em cada um de nós e em grandes quantidades. O bom português que se preze tem que saber um pouco de tudo e tudo de todos, independentemente de estar habilitado para tal ou não.
Ninguém é capaz de dizer que não sabe. E quem tem coragem para o fazer arrisca-se a ser alvo de chacota e de ser acusado de estúpido.
Ora, à luz daquilo que defendia Sócrates na sua filosofia, este “raciocínio barato” é extremamente condenável. Para se alcançar um ideal de justiça e de verdade é necessário que cada um de nós se examine a si próprio e que se auto-mentalize que a sua sabedoria não é infindável e infinita. O saber reconhecer que afinal não passamos de ignorantes em relação a todos aos desafios que este mundo nos propõe, é o primeiro passo para o objectivo que o filósofo sempre desejou, um Homem mais justo.
À luz da filosofia socrática, ser ignorante não significa perder a auto-confiança em nós próprios. Significa perder a arrogância com que muitas vezes nos relacionamos uns com os outros só porque temos a “mania” de sermos os “senhores da verdade” e da sabedoria.
Num mundo cada vez mais global urge alterar mentalidades. As realidades nacionais não são mais pessoais, mas sim colectivas. O “Eu” passou a “Nós”, e certamente que o nosso comportamento individual se fará reflectir nos outros. O resultado disto? Tal como se acredita numa teoria de regressão do processo científico do Big Bang, em que quando se atingir o ponto máximo de expansão da matéria esta iniciará um percurso inverso, também no processo social acredito que possa acontecer o mesmo. Quando a arrogância da sabedoria e da superioridade cega atingir o seu ponto máximo de expansão, voltaremos, passo a passo, a um passado de isolamento pessoal, em que cada Homem será a sua própria ilha, alimentando-se do seu próprio saber, sem oportunidade de o partilhar e de se cultivar e construir também com o conhecimento que o outro lhe poderia oferecer.